Português

No STF, Bolsonaro e militares reconhecem conspiração para derrubar a democracia no Brasil

Ex-presidente Jair Bolsonaro durante interrogatório no STF. [Photo by Fellipe Sampaio/STF / CC BY 4.0]

Na semana passada, em 9 e 10 de junho, o Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro interrogou o ex-presidente Jair Bolsonaro e os acusados de integrar o “núcleo crucial” da conspiração do golpe que culminou na insurreição de 8 de Janeiro de 2023 em Brasília. Dos oito réus ouvidos pelo STF, seis eram militares, incluindo ex-comandantes do Exército e da Marinha e generais de quatro estrelas.

Os interrogatórios, transmitidos ao vivo em rede nacional, representam um acontecimento político marcante na história brasileira. Num país que viveu duas décadas sob uma ditadura militar brutal, de 1964 a 1985, pela primeira vez os generais apareceram no banco de réus sendo inquiridos por seus crimes contra a democracia.

O fato mais significativo que emergiu dos depoimentos foi o reconhecimento por Bolsonaro e os demais acusados de que o ex-presidente conspirou junto ao comando das Forças Armadas para impedir a tomada de posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva do Partido dos Trabalhadores (PT), democraticamente eleito em 2022.

As reuniões entre o ex-presidente e os comandantes militares que discutiram planos de golpe Estado, realizadas após a derrota eleitoral de Bolsonaro, já haviam sido confirmadas pelos ex-comandantes da Força Aérea, Tenente-Brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior, e do Exército, General Marco Antônio Freire Gomes, que depuseram na condição de testemunhas.

Os ex-comandantes afirmaram que, numa reunião em 7 de dezembro de 2022, o ex-ministro da Defesa, General Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, apresentou-lhes o documento que ficou conhecido como “minuta do golpe”. O documento previa a transferência de poder para os militares e a anulação das eleições.

Questionado pelo relator do caso, ministro Alexandre de Moraes, sobre a reunião de 7 de dezembro, Bolsonaro declarou não poder “garantir que tal dia foi tratado tal assunto”. Ele alegou, contudo, que as reuniões com o comando militar “foram em grande parte em função da decisão do TSE [Tribunal Superior Eleitoral], quando nós peticionamos o TSE sobre possíveis vulnerabilidades”.

Bolsonaro se referia à petição do Partido Liberal (PL), ao qual pertence, que exigia a anulação de parte dos votos do segundo turno das eleições presidenciais, que acusavam de fraude. Uma vez negada a petição, “sobrou para gente buscar uma alternativa na Constituição”, disse o ex-presidente.

Bolsonaro declarou ainda:

Talvez tenha sido nessa reunião [em 7 de dezembro]. Nós estudamos possibilidades outras dentro da Constituição... Como o próprio comandante Paulo Sérgio falou, tinha de ter muito cuidado na questão jurídica, porque não podíamos fazer nada fora disso. Obviamente a gente sabia disso. Em poucas reuniões abandonamos qualquer possibilidade de uma ação constitucional, abandonamos e enfrentamos o ocaso do nosso governo.

Moraes questionou Bolsonaro: “O senhor está dizendo que a cogitação... dessa questão de Estado de sítio, Estado de defesa teria sido em virtude da impossibilidade de recurso eleitoral, é isso?”. “Sim, senhor”, respondeu o ex-presidente.

Na sequência, o Procurador Geral da República, Paulo Gonet, inquiriu:

Gonet: Eu gostaria de saber se o réu, Bolsonaro, entende que, pelo fato de não se conformar com uma decisão de um judiciário, se conforma-se com as quatro linhas da Constituição convocar comandantes militares para debater o assunto.

Bolsonaro: Foi um convite. Por que comandante militar? Eu tenho a mesma formação, fizemos a mesma academia, fizemos as mesmas escolas de aperfeiçoamento; e o militar, nas horas boas e ruins, estão [sic] contigo. Eu não tinha clima para convidar ninguém para discutir qualquer assunto, sobrou a eles. ... E eu confesso que muita coisa que eles falaram eu absorvi e cheguei à conclusão rapidamente que não tinha mais o que fazer, que esse governo [Lula] ia cair de maduro, como está caindo.

Embora tenha reconhecido suas deliberações conspiratórias com os comandantes militares, Bolsonaro insistiu que isso não pode se caracterizar como elaboração de um golpe. “Da minha parte e por parte de comandantes militares... nunca se falou em golpe. Golpe é uma coisa abominável”, disse.

A tese fundamental da defesa de Bolsonaro – de que a conspiração do presidente com os militares contra a República é legítima e constitucional – é extraordinária. Seu objetivo é subverter a Constituição e subordinar os princípios democráticos mais básicos a uma ordem baseada no poder irrestrito do Executivo; uma ordem que representa efetivamente a ditadura do presidente apoiado nas Forças Armadas.

Essa tese autoritária foi promovida sistematicamente por Bolsonaro ao longo de sua presidência. Ele buscou insistentemente apresentar os militares como um “poder moderador”, que se coloca acima dos demais poderes, e ao mesmo tempo como “seu exército” pessoal.

Os argumentos apresentados ao STF pelos militares cúmplices de Bolsonaro, de maneira semelhante, buscaram normalizar práticas que historicamente caracterizaram rupturas da ordem democrática.

O ex-comandante da Marinha, Almirante Almir Garnier Santos, também reconheceu a ocorrência das reuniões nas quais é acusado de ter expressado apoio a um golpe de Estado e colocado suas tropas à disposição. Em sua defesa, Garnier declarou:

Havia vários assuntos [na reunião de 7 de dezembro], o principal era a preocupação que o presidente tinha, que também era nossa, das inúmeras pessoas que estavam, digamos assim, insatisfeitas e se posicionavam no Brasil todo, em frente aos quartéis do Exército.

Questionado pelo ministro Luiz Fux sobre os motivos da “preocupação” dos militares, Garnier respondeu:

Preocupação com a questão das pessoas na rua insatisfeitas, que isso pudesse descambar para quebra-quebra... que os órgãos de segurança pública pudessem vir a perder o controle, ou imaginarem que isso poderia acontecer. Isso traria responsabilidade normalmente para o último bastião desse negócio, que são as Forças Armadas... [Elas] sempre estão prontas para as suas missões constitucionais.

O depoimento do ex-ministro da Defesa também foi revelador. O Gen. Nogueira relatou: “Depois da reunião, cheguei ao presidente e alertei da gravidade se ele estivesse pensando em estado de defesa, de sítio, as consequências de uma ação futura. A reunião do dia 7 [de dezembro] foi isso aí”. Apresentando a execução do golpe Estado como uma medida “grave”, o ex-ministro buscou somente distanciar-se da responsabilidade por sua execução prática.

O General Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) de Bolsonaro, aceitou apenas responder a perguntas da sua defesa. Quando questionado se “coordenou alguma ação da Abin para que a agência produzisse relatórios ou documentos com informações falsas sobre as eleições”, Heleno respondeu: “Não havia clima”, sendo interrompido pelo próprio advogado que exigiu: “Sim ou não, general”.

A ampla aceitação dessas concepções fascistas entre o comando militar brasileiro é exposta pelo fato de que foram promovidas não somente pelos réus do processo. O general Freire Gomes, apresentado pela narrativa oficial como responsável por “salvar a democracia”, também afirmou a “constitucionalidade” das discussões conspiratórias com o presidente.

Em seus depoimentos ao STF, Bolsonaro e os militares fascistas apresentaram as bases políticas de uma batalha que pretendem travar fora dos limites da corte.

Poucos dias após sua deposição, Bolsonaro convocou uma confrontação ao processo do STF. “Chega dessa farsa”, ele escreveu no Instagram na última sexta-feira. Apresentando a acusação da tentativa de golpe como um “enredo montado para perseguir adversários políticos e calar quem ousa se opor à esquerda', ele exigiu: “esse processo político disfarçado de ação penal precisa ser interrompido antes que cause danos irreversíveis ao Estado de Direito em nosso país”.

O filho mais velho do ex-presidente, Flávio Bolsonaro, foi ainda mais agressivo em uma entrevista à Folha de São Paulo publicada no último sábado. Afirmando que a “anistia é a saída honrosa para todo mundo”, ele declarou forma ameaçadora que uma condenação de seu pai provocará uma “reação do povo” e “internacional” que “não estão no nosso controle”.

Flávio levantou um cenário em que seu pai seja condenado e apoie um candidato às eleições presidenciais de 2026. “Não só [Bolsonaro] vai querer apoiar alguém que banque a anistia ou o indulto, mas que seja cumprido”. Assumindo que tal perdão será contestado no STF, ele acrescentou: “É uma hipótese muito ruim, porque a gente está falando de possibilidade e de uso da força”.

Como a referência de Flávio à “resistência internacional” indica, os fascistas brasileiros estão travando sua disputa não somente no terreno político nacional.

Dias antes de depor ao STF, Bolsonaro foi interrogado pela Polícia Federal no inquérito aberto contra seu segundo filho, Eduardo Bolsonaro. Ele é acusado de obstruir e coagir o processo em andamento contra o ex-presidente através de atividades conduzidas a partir dos Estados Unidos.

Em fevereiro deste ano, Eduardo Bolsonaro abandonou seu cargo de deputado federal e mudou-se para o Texas para articular-se diretamente com a ala abertamente fascista do Partido Republicano. Desde então, o governo Trump promoveu uma série de medidas de “pressão” contra o sistema judiciário brasileiro. Mais recentemente, o secretário de Estado, Marco Rubio, declarou que o governo americano “está considerando fortemente” sanções contra Alexandre de Moraes.

Jair Bolsonaro declarou em diferentes ocasiões recentes que “o Brasil não tem como sair dessa situação por conta própria” e que a intervenção dos EUA “é muito bem-vinda”. Alardeando a mentira de que o governo do PT está “entregando o Brasil para a China” e provendo “material que a Rússia... a China não tem” para a “construção de bombas atômicas”, Bolsonaro assegurou: “Já passei para a equipe do Trump isso aí... Eles têm uma preocupação... de que o Brasil se consolide como uma nova Venezuela”.

Não há dúvidas de que, se Bolsonaro e os militares promovessem um golpe no Brasil hoje, seriam apoiados por Washington.

Para além da articulação direta de Trump com os fascistas brasileiros, há uma correlação profunda entre a decomposição da democracia no Brasil e nos Estados Unidos.

A conspiração fascista de Bolsonaro baseou-se abertamente no exemplo do golpe orquestrado por Trump em 6 de janeiro de 2021. Desde o primeiro dia de seu segundo mandato, Trump está promovendo a continuação dessa conspiração para instaurar uma ditadura presidencial nos EUA.

Os acontecimentos das últimas semanas marcam um novo patamar desse golpe em andamento. Como o World Socialist Web Site explicou há duas semanas em sua declaração “Sete dias em junho: O golpe de Estado em marcha de Trump”:

Enquanto soldados patrulham as ruas de Los Angeles sob o pretexto de responder a manifestações, o verdadeiro epicentro dessa operação é a Casa Branca.

Os paralelos históricos evocam as brutais ditaduras militares impostas na América Latina na década de 1970 – no Chile, Brasil, Argentina e em outros lugares – onde governos capitalistas, incapazes de governar através das instituições existentes, responderam a crises sociais com repressão em massa, desaparições e terror. O que está em jogo, no entanto, não é o exército derrubando o presidente, mas o presidente em exercício derrubando a Constituição.

Essas medidas culminaram em uma grande parada militar em Washington no sábado, 14 de junho, coincidindo com o 79º aniversário de Trump. Em outro artigo, o WSWS explicou:

Um novo marco político está sendo estabelecido nos Estados Unidos, no qual o governo federal opera fora de qualquer restrição legal, realizando ações que não só são sem precedentes em termos de alcance, mas também flagrantemente ilegais e inconstitucionais.

O “novo marco político” que Trump busca impor nos EUA coincide diretamente com as perspectivas defendidas publicamente por Bolsonaro e os militares brasileiros perante o STF.

Mas a crise política em aprofundamento não é apenas impulsionada pela direita. A ofensiva de Trump está sendo confrontada por um levante crescente da classe trabalhadora e outros setores populares norte-americanos. A parada militar fascista de Trump no último sábado, que foi um fiasco de público, foi respondida com os maiores protestos na história dos Estados Unidos, em grande medida espontâneos.

A vitória dessa luta requer a construção de um movimento socialista e internacionalista liderado pela classe trabalhadora. A questão central é a construção de uma direção revolucionária que expresse conscientemente esses objetivos.

No Brasil, a resposta reacionária do PT e do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que ocupam a posição de “esquerda” oficial, foi a promoção de uma “frente ampla” do establishment burguês contra Bolsonaro.

Longe de conter o avanço do fascismo, o PT e a pseudoesquerda abrem o caminho para o seu fortalecimento. Ao mesmo tempo, o governo pró-capitalista do PT está em rota colisão com uma inevitável erupção social massiva da classe trabalhadora.

Loading