Em maio, completou-se um ano das enchentes causadas pelas mudanças climáticas impulsionadas pelo capitalismo que devastaram o estado mais ao sul do Brasil, Rio Grande do Sul, em um dos piores desastres ambientais no Brasil. Esse evento climático extremo tem exposto toda a indiferença da elite dominante brasileira em relação à vida da população trabalhadora do estado, cujas condições de vida só pioraram desde então.
As enchentes impactaram 478 dos 497 dos municípios do estado, o que representa 91% dos municípios, afetando diretamente cerca de 2,4 milhões dos 11,2 milhões de habitantes do estado. Segundo o Mapa Único do Plano Rio Grande divulgado pelo governo estadual, o número de desalojados pelas inundações e deslizamentos em todo o estado chegou a 877.729. O número de mortos chega a 184 e 25 ainda estão desaparecidos, de acordo com a Defesa Civil do estado.
Apesar do alegado sucesso da “reconstrução” do Rio Grande do Sul promovido pelo governador Eduardo Leite e por representantes do governo do presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (Partido dos Trabalhadores – PT), a crise social se agravou enormemente. Estima-se que houve uma perda de 432.000 empregos em 2024, devido à destruição de infraestruturas e à paralisação de setores produtivos. Nos municípios mais impactados, entre 84% e 92% dos empregos formais foram comprometidos, enquanto os pequenos comércios e trabalhadores informais enfrentaram dificuldades para retomar suas atividades e garantir sua subsistência.
Quase metade (47%) das famílias que ganham até dois salários mínimos relatou ter perdido a casa, os móveis, os eletrodomésticos ou o próprio sustento. Aguardando uma solução definitiva de moradia, cerca de 380 pessoas ainda permanecem em abrigos no Rio Grande do Sul, com 93% delas nos dois maiores abrigos restantes, localizados em Canoas e Porto Alegre, que devem ser fechados até o final do mês.
Por meio de programas como o Compra Assistida, que oferece até R$ 200.000 para a compra de imóveis existentes, e o Minha Casa Minha Vida, o governo Lula alega garantir todos os recursos para as soluções habitacionais. Embora a expectativa fosse contemplar 30.000 famílias com moradia definitiva, cerca de 1.500 contratos foram assinados através do Compra Assistida até o final de abril.
“Se o governo me deu minha casa, por que eu não vou pra minha casa de uma vez? Tenho quase um ano em abrigo”, questiona Claudio Joel Bello em reportagem da Agência Brasil. Ele perdeu sua casa em Canoas, no bairro Mathias Velho, que ficou totalmente alagado por mais de um mês, e foi selecionado pelo Compra Assistida para ganhar uma casa em Sapucaia do Sul, outro município da região metropolitana de Porto Alegre.
Seguindo o mesmo manual usado pelas elites dominantes para encobrir a pandemia de COVID-19 que segue em andamento, a cobertura da mídia burguesa nas últimas semanas tem se concentrado em enaltecer a “resiliência do povo gaúcho” em “retomar a normalidade”, mascarando o aprofundamento da crise social e a incapacidade do sistema capitalista de solucionar as crises que ele mesmo causa. A percepção da população, no entanto, é exatamente a oposta.
Uma pesquisa do instituto Quaest, divulgada em maio do ano passado, mostrou que 99% dos brasileiros acreditam que as enchentes no Rio Grande do Sul têm alguma relação com as mudanças climáticas, e mais da metade dos 2.045 entrevistados acreditam que a maior responsabilidade está com o governo municipal, estadual ou federal.
Ficou na memória da população a declaração do governador Leite, no dia 5 de maio de 2024, ao lado do presidente Lula e líderes do poder legislativo: “Não é hora de procurar culpados, não é hora de transferir responsabilidades.” Lula repetiu essa linha no mês seguinte, quando disse que “não quer procurar culpados”, em visita ao estado.
Além dos avisos sobre as mudanças climáticas feitos por cientistas desde pelo menos a segunda metade do século XX, o estudo “Brasil 2040”, encomendado em 2014 pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE) durante o governo de Dilma Rousseff (PT), projetou, há uma década, elevação do nível do mar, mortes por ondas de calor, colapso de hidrelétricas, falta de água no Sudeste, agravamento das secas no Nordeste, além do aumento das chuvas no Sul.
Em 2023, o Brasil registrou o maior número de desastres naturais, com 1.161 eventos, o que representa uma média de, pelo menos, três desastres por dia, segundo dados apresentados pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Já entre 1˚ de janeiro e 10 de abril deste ano, mais de 5,9 milhões de pessoas foram afetados por desastres no país, e 925 Municípios decretaram situação de emergência ou estado de calamidade pública, segundo dados do Sistema Integrado de Informações sobre Desastres (S2ID), analisados pela Confederação Nacional de Municípios (CNM).
Apesar das tentativas de atribuir as enchentes a um ato fortuito da natureza, a responsabilidade direta e negligência de todos os níveis de governo na escala e no impacto do desastre são inegáveis. No caso da capital do estado, Porto Alegre, a falta de investimento e a redução de recursos humanos e capacidade técnica há mais de 10 anos no Departamento Municipal de Água e Esgoto (DMAE) e a extinção em 2017 do Departamento de Esgotos Pluviais (DEP), órgão especializado em drenagem urbana e manutenção das casas de bombas e comportas, contribuíram diretamente para o colapso do sistema de proteção contra enchentes.
Nas enchentes do ano passado, 19 das 23 casas de bombas próximas ao rio Guaíba, que circunda Porto Alegre e atingiu o seu maior nível histórico de 5,37 metros, ultrapassando a cota de inundação, na época, de 3 metros, precisaram ser desligadas porque foram inundadas ou apresentavam risco de choque elétrico, o que acelerou a inundação das áreas centrais da capital. O Aeroporto Internacional Salgado Filho, a Estação Rodoviária e as Estações da Empresa de Trens Urbanos de Porto Alegre (Trensurb) foram inundados e ficaram fechados por meses antes de voltarem à operação integral.
Hoje, o sistema de proteção está longe de ser recuperado, muito menos modernizado. Somente foi criada uma diretoria de proteção contra cheias em janeiro deste ano no DMAE, que ainda corre risco de ser privatizado, promessa de campanha do prefeito Sebastião Melo nas eleições municipais do ano passado.
Um estudo completo sobre o sistema de proteção da cidade só deverá ficar pronto em julho de 2026, e a previsão do DMAE para que a cidade fique efetivamente protegida é de três a cinco anos. Essas previsões nem contemplam a construção de um sistema de defesa na Zona Sul, onde alguns bairros estão sem proteção contra os avanços do rio Guaíba.
Das 14 comportas do sistema de proteção, as duas que foram arrancadas pelas enchentes ainda não foram substituídas, três foram removidas e substituídas por muros de concreto, contra a recomendação de especialistas, e as obras nas demais comportas ainda não foram concluídas. Nenhuma das casas de bombas está totalmente recuperada e operacional em sua plena capacidade, e o processo de reconstrução dos diques envolve a remoção de famílias.
Para Fernando Dornelles, hidrólogo do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), se uma enchente semelhante atingisse a capital:
Acredito que inundaria novamente, porque a gente ainda teria de enfrentar isso com alternativas emergenciais, como sacos de areia, que são alternativas mais vulneráveis do que uma comporta de aço bem projetada e afixada... E o dique do [bairro] Sarandi nunca atingiu a cota do projeto.
Já em 31 de março, uma forte tempestade, com ventos de 111 km/h, atingiu Porto Alegre e várias outras cidades, deixando evidente para a população que ainda segue vulnerável. Unidades de saúde na capital registraram destelhamentos, alagamentos e falta de energia, afetando o Hospital de Pronto Socorro e o Hospital São Lucas da Pontifício Universidade Católica, que teve que realocar os pacientes na emergência. Em Eldorado do Sul, cerca de 450 casas e 15 escolas municipais foram atingidas. Vídeos de uma tromba de água se formando sobre o rio Guaíba foram registrados por moradores e circularam nas redes.
Além da privatização de bens comuns como a água e a energia, a ampliação das atividades do agronegócio e o enfraquecimento dos órgãos e leis ambientais, promovidos pelo governador Leite, as enchentes escancaram as falhas do sistema de monitoramento, previsão e alertas do estado e as deficiências dos órgãos de Defesa Civil.
Das 94 estações pluviométricas da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Infraestrutura (SEMA), 60 estavam disponíveis no portal da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), das quais somente 12 estavam efetivamente transmitindo os dados. Militares e políticos sem experiência e capacidade técnica estavam à frente dos órgãos de Defesa Civil, cenário que segue o mesmo em muitos municípios hoje.
Fora a instalação de um novo radar meteorológico em Porto Alegre em agosto, ainda não foram executados os projetos de ampliação e recuperação da rede de monitoramento e não há previsão da implementação completa. Hoje, por exemplo, nenhum órgão oficial faz previsões do nível do rio Guaíba.
Devido às falhas no sistema de alerta e na preparação, o resgate e salvamento de pessoas em risco, contando muito com a ajuda de voluntários, tornou-se o principal de recurso entre as principais ações da fase emergencial, resultando em um custo de vidas. Um estudo do IPH/UFRGS, publicado em dezembro, concluiu que muitas mortes poderiam ter sido evitadas com um sistema de alerta eficiente e a evacuação antecipada de áreas de risco.
Walter Collischonn, professor do IPH/UFRGS, comenta:
Receber um aviso na sua casa de que vai chover muito no seu estado não é a mesma coisa do que dizer que às sete horas da noite você vai ter que sair de casa porque ela vai ser inundada. Esse é outro nível de precisão na informação. Pintar o estado com uma mancha vermelha e dizer que foi dado alerta é muito pouco.
Em fevereiro, o governador Leite e prefeito Melo, visitaram a Holanda para aprender como o país gerencia enchentes e convive com as inundações dos rios e, segundo relatos, admiraram conceitos como a “cidade-esponja”. A viagem foi alvo de muitas críticas. Conceitos como o de “cidade-esponja” não são novos em Porto Alegre e foram implementados anteriormente.
Na década de 1990, várias bacias de amortecimento, principal instrumento do conceito de “cidade-espoja”, já estavam em execução em Porto Alegre. Na prática, as administrações passadas e atuais ignoram ou combatem essas ideias.
Um estudo recente da ANA mostrou que catástrofes climáticas semelhantes às enchentes no Rio Grande do Sul do ano passado devem se tornar cinco vezes mais frequentes nos próximos anos na região. O que ocorria, em média, a cada 50 anos, agora deve ocorrer, e com mais intensidade, a cada 10 anos.
Diante desse cenário, a prevenção e adaptação devem ser de alta prioridade, mas, apesar da mobilização de recursos emergenciais, a principal prioridade do governo Lula tem sido cumprir a meta de zerar o déficit fiscal. O orçamento federal para prevenção e combate a desastres ambientais caiu de R$ 1,9 bilhão em 2024 para cerca de R$ 1,7 bilhão em 2025. As emendas parlamentares destinadas a programas de desastres climáticos também caíram quase pela metade, de R$ 69,9 milhões em 2024 para R$ 39,1 milhões em 2025.
No que diz respeito à preservação ambiental, a insistência do governo Lula na extração de petróleo na Bacia da Foz do Amazonas—que enfrenta forte resistência de órgãos ambientais e da sociedade devido aos riscos ambientais elevados—mostra bem as suas prioridades.
O modo de produção capitalista—em que o lucro sempre tem precedência sobre as necessidades humanas e sociais—é o principal contribuinte para as mudanças climáticas, bem como o maior obstáculo para enfrentá-las. Servidores fiéis do capitalismo, os responsáveis ocultam o seu papel em perpetuar o crime social ao invocar conceitos de caso fortuito ou força maior.
Sendo coautores do crime, sua resposta à crise ambiental não resultará em soluções reais e está de acordo com suas políticas que promovem a divisão e o nacionalismo em uma era de guerra imperialista. A mudança climática é uma ameaça existencial para todos em todo o mundo, e a única força social capaz de enfrentar essa ameaça, tirando o poder das mãos da classe capitalista e organizando a sociedade com base nas necessidades sociais e humanas—e não no lucro—, é a classe trabalhadora internacional.